A
Itália é um país relativamente recente. Antes da reunificação italiana em
meados do século XIX, a península italiana era formada por reinos
independentes, repúblicas, ducados e estados papais. A primeira loja maçônica
de que se tem notícia, apesar da divergência dos historiadores (Findel x
Gould), fundada naquela península, antes da criação do Reino da Itália, teria
sido uma formada em Florença por Lord Sackville em 1773. No entanto, devido a
seu envolvimento com a política partidária e a religião, não foi reconhecida
pela Grande Loja Unida da Inglaterra.
A
história relata que, em 1877, ainda nos tempos da reunificação de Mazzini e
Garibaldi, foi fundada pelo Grande Oriente uma loja maçônica em Roma chamada
Propaganda Maçônica. Era frequentada por políticos e altos funcionários
governamentais que não deviam ter os seus nomes expostos na relação das lojas
normais e era diretamente ligada ao Grão-Mestre. Esta seria a Propaganda Uno.
Este
artigo busca traçar a trajetória da loja maçônica responsável por um dos
maiores escândalos político-maçônico-estratégicos da segunda metade do século
XX, ocorrido em 1981. A loja,
inicialmente, quando formada pelo Grande Oriente da Itália – GOI, era uma loja
de pesquisa que deveria funcionar dentro do espírito da Propaganda Uno.
Posteriormente, em 1981, quando foi dissolvida e declarada ilegal pelo GOI (que
também teve o seu reconhecimento suspenso pela Grande Loja Unida da Inglaterra
em 1993), tornou-se letal, secretíssima e irregular – a famosa loja Propaganda
Maçônica nº Due (P2). Era dirigida por Licio Gelli, um gênio organizacional e
político, que montou um verdadeiro governo paralelo dentro do Estado Italiano
com repercussão na política da OTAN, nos EEUU, em algumas esferas da cúpula do
Vaticano e na Ibero-América. Deve haver um extremo cuidado ao manipular o
assunto da P2, pois está se lidando com conceitos altamente explosivos e
polêmicos consoante os seguintes atores: CIA, KGB, Soberana Ordem Militar de
Malta, Banco do Vaticano, Opus Dei, Maçonaria Irregular, Comissão Trilateral,
Serviço Secreto Italiano, Operação Gládio, Bispo Marcinkus, João Paulo I,
Mossad, Jesuítas, Nazismo, Comunismo, Fascismo, Máfia etc.
Gelli
foi membro ativo do movimento fascista em 1936, tendo servido ao lado das
tropas de Francisco Franco no Batalhão Camisas Negras durante a Guerra Civil
Espanhola. Quatro anos mais tarde, recebeu a carteira do Partido Nacional
Fascista Italiano. Em 1942, já se tornara secretário dos fascistas italianos no
exterior. No período da IIª Guerra Mundial, Gelli, atuando como membro dos
Camisas Pretas de Mussolini, chegou a ser oficial de ligação do Exército
Italiano com a divisão de elite SS de Hermann Goering. Em 1944, sentindo que os
ventos não mais sopravam favoráveis a Mussolini, criou uma rede de resistência
conectada à CIA, graças ao V Exército Norte-americano recém chegado à
península. Após a guerra, migrou para a Argentina sendo o primeiro a obter uma
dupla nacionalidade: argentino-italiana. No exílio argentino, conseguiu se
aproximar de Perón, resultando numa grande amizade e na nomeação para a posição
de conselheiro econômico para os assuntos italianos. Com o passar dos anos,
Gelli retornou ao seu país de origem, estabelecendo-se como empresário em
Arezzo, na Toscana. Culminou sua carreira com a entrada para o mundo das altas
finanças e dos negócios em grande escala. Em 1981, foi acusado, veementemente,
de fomentar uma conspiração que daria um golpe de estado na Itália. Em 1973,
foi citado como traficante de armas para os países árabes e implicado numa
transação de três milhões de liras italianas numa operação conhecida como
Permaflex, uma firma que trabalhava com a OTAN. Gelli era tão bem articulado
com o establishment político estadunidense que chegou a ser convidado para as
festas de investidura de três presidentes: Ford, Carter e Reagan. A facilidade
de Gelli em atuar no mundo político e econômico era fantástica. Era amigo de
Paulo VI, Coronel Kadafi, Ceanescu, Perón (por estas antigas relações
argentinas chegou, na Guerra das Malvinas, a negociar mísseis Exocet franceses
para as Forças Armadas de Galtieri) e tutti quanti. Afirmam, ainda, que chegou
a atuar como captador de fundos para a campanha de George Bush.
Iniciou-se
na maçonaria em 1965, buscando se mirar nos dois Grão-Mestres sucessivos do GOI
– Gamberini e Salvini – que se interessavam por uma aproximação mais estreita
com o Vaticano. Três anos mais tarde, foi nomeado secretário da P2, elegendo-se
seu Venerável Mestre em 1975. Gelli convidou Michele Sindona, o gênio
financeiro do Vaticano, que trouxe consigo Roberto Calvi, o banqueiro mais
chegado ao Vaticano. Contudo Gelli já tinha atuação marcante, pois, em dezembro
de 1969, num encontro promovido no escritório romano do Conde Umberto Ortolani,
o Embaixador da Ordem de Malta para o Uruguai, que era, na época, o cérebro da
P2, foi montado o Estado-Maior da Loja: Umberto Ortolani, Licio Gelli, Roberto
Calvi e Michele Sindona.
Pelos
idos de 1974, a P2 contava um efetivo de mais de 1000 membros, destacando-se
uma maioria de elementos de escol na sociedade italiana, européia e
ibero-americana. Consta num relatório de um dos procuradores italianos
encarregados do inquérito da P2: ‘A Loja P2 é uma seita secreta que combinava
negócios e política com a intenção de destruir a ordem constitucional do país’.
Entre seus membros contavam-se três componentes do Gabinete, incluindo o
Ministro da Justiça Adolfo Sarti. Vários ex-Primeiros Ministros, como Giulio
Andreotti que exerceu o cargo entre 1972 e 73 e novamente entre 76 e 79; 43
membros do Parlamento; 54 altos executivos do Serviço Público; 183 oficiais das
forças naval, terrestre e aérea, incluindo 30 generais e 8 almirantes (entre
eles o Comandante das Forças Armadas, Almirante Giovanni Torrisi); 19 juízes;
advogados, magistrados, carabiniere; chefes de polícia; poderosos banqueiros;
proprietários de jornais, editores e jornalistas (incluindo o editor do maior
jornal do país Il Corriere Della Sera); 58 professores universitários; líderes
de diversos partidos políticos (evidentemente, não do Partido Comunista
Italiano, por razões óbvias); diretores dos três principais serviços de
inteligência do país. Todos esses homens, de acordo com os documentos
apreendidos, juraram obediência a Gelli e estavam prontos para responder a seu
chamado.
Os
953 nomes estavam divididos em 17 grupos ou células, cada qual com um líder. A
P2 era tão secreta e tão profissionalmente dirigida por Gelli que, até mesmo
seus membros, não tinham conhecimento sobre quem pertencia à organização.
Aqueles que mais conheciam a organização eram os 17 líderes de células e, mesmo
esses, somente conheciam o seu próprio grupo.
Magistrados
italianos, examinando cuidadosamente documentos apreendidos na Villa Wanda
(nome de sua mulher), de onde Gelli tinha fugido quando a P2 explodiu,
encontraram centenas de documentos altamente secretos dos serviços de
inteligência. O Coronel Antonio Viezzer, ex-chefe dos serviços secretos de
inteligência combinados, foi identificado como a fonte primária desse material,
tendo sido preso em Roma por espionar em nome de uma potência estrangeira.
Ainda
nessa época, Gelli reuniu-se secretamente com o General Alexander Haig,
ex-Comandante Supremo da OTAN e, no momento, Chefe do Gabinete Civil do
Presidente Nixon. O encontro foi na própria Embaixada dos EEUU em Roma. Com as
bênçãos de Henry Kissinger, então Assessor do Conselho de Segurança Nacional,
Gelli saiu do encontro com a promessa de contínuo suporte financeiro para a
Operação Gládio e para sua loja maçônica além de um plano para a subversão
interna da política italiana.
Reuniu-se,
a seguir, com outro membro da P2 – Roberto Calvi, Presidente do Banco
Ambrosiano de Milão (la banca dei preti), o segundo maior banco privado da
Itália e um dos maiores acionistas do Banco do Vaticano – para dar sequência ao
plano. Calvi, neste ínterim, já tinha começado a bombear dinheiro ilegalmente
do seu banco, usando o Banco do Vaticano – o Instituto per le Opere di
Religione (IOR) para a lavagem. Gelli tinha Calvi em suas mãos. Convém
salientar que, no início de 1967, um ex-chefe do Serviço Secreto Italiano tinha
se filiado à loja P2, trazendo consigo mais de 150.000 fichas de pessoas chave
na sociedade italiana. Seja por chantagem ou ideologia, Calvi continuou
drenando vastos fundos para Gelli e a P2 até a falência final do banco. Em
1978, outro fato político chocou a sociedade italiana e o mundo: o sequestro e
posterior assassinato do ex-Primeiro Ministro Italiano – Aldo Moro – pelas
Brigadas Vermelhas, um grupo revolucionário de tendências pró-soviéticas.
Evidências posteriores demonstraram que o assassinato de Moro foi orquestrado
pela P2 e que as Brigadas Vermelhas e Negras estavam infiltradas pelos serviços
de inteligência dos Estados Unidos.
Alguns
meses após o assassinato de Moro, o mundo assistiu à eleição de Albino Cardeal
Luciani para o papado com o nome de João Paulo I. Irradiando simpatia e
honestidade, a eleição de Luciani causou um certa angústia em alguns setores da
cúria, especialmente nas áreas próximas ao bispo Paul Marcinkus, um bispo de
Chicago que dirigia o Banco do Vaticano e que sabia ter seus dias contados,
pois estava demasiadamente envolvido em fraudes financeiras, especialmente com
Roberto Calvi. Alguns, ainda, têm dúvidas de como o IOR-Banco do Vaticano se
envolveu numa tão má circunstância. Um pouco de história poderá esclarecer
alguns pontos. Em 1929, o Vaticano e Mussolini assinaram o Tratado Lateranense,
conhecido como a Concordata do Vaticano, que funcionou até 1984, quando a
religião católica não foi mais reconhecida como a religião oficial do Estado
Italiano. Como resultado, a cidade do Vaticano tornou-se um estado soberano
dentro da cidade de Roma e independente do governo italiano, tendo a Igreja
recebido um aporte financeiro de milhões de liras vindas do Duce. Como compensação,
esperava-se uma certa benevolência do Vaticano em relação ao fascismo
ascendente. A Igreja, desejando bem investir seus recursos para o pagamento de
seus débitos e de suas obras de caridade, criou, primeiramente o APSA e depois
o IOR. O IOR tornou-se um paraíso para os ricos italianos que desejavam
espoliar o fisco em clara violação às leis bancárias italianas, prevenindo que
seu dinheiro não caísse em mãos dos alemães. Contudo, a elite vaticana não
estava contente em somente trabalhar com os bancos católicos do país (assim
chamados porque emprestavam dinheiro a baixas taxas de juros, visando não
violar a lei da usura da Igreja). Necessitavam de financistas leigos para
encontrar investimentos seguros e lucrativos para a Igreja. Daí surgem homens
do naipe de Michele Sindona e Roberto Calvi. O império italiano de Sindona
começou a colapsar em 1974 e o de seu protegido – Calvi – começou em 1978 e
culminou com a quebra do Ambrosiano em agosto de 1982. Salienta-se ainda, que,
antes do seu indiciamento por morte do investigador italiano Giorgio Ambrosoli,
liquidante de seu Banca Privata Italiana, Michele Sindona era, não só o
financista da P2 como o conselheiro de investimentos do IOR, ajudando o Banco a
vender os seus ativos italianos e reinvesti-los nos EEUU. Em 1980, Sindona foi
preso em Nova Iorque e condenado nos EEUU por 65 casos de acusações de fraude e
pela falência fraudulenta de seu banco norte-americano – Franklin National Bank
– sendo extraditado para a Itália em 1984, onde dois anos depois – março de 86
– foi envenenado em sua cela enquanto cumpria uma sentença por assassinato.
Calvi foi condenado em 1981 sob acusação de transação com moeda ilegal.
O
Papa Luciani não era bem visto pela extrema-direita italiana, pois esta o
considerava indulgente em relação ao comunismo e por seu pai ter pertencido aos
quadros do Partido Socialista Italiano. Com 33 dias de pontificado no ano de
1978, João Paulo I, o Papa “Sorriso”, como era popularmente conhecido, foi
encontrado morto nos seus aposentos. A súbita morte do Papa deixou um rastro de
interpretações e “especulações” que duram até os dias atuais.
Com
a morte de Luciani, foi eleito papa o polonês Karol Wojtyla, um papa bem mais
conservador, pois fora testado na luta anti-soviética contra o governo polonês.
Marcinkus obteve, temporariamente, uma sobrevida, pois o novo papa necessitava
urgentemente de providenciar recursos para o sindicato dos estaleiros navais
poloneses, um trabalho que viria culminar no Movimento Solidariedade, que
determinou o fim do comunismo na Polônia, a queda do Muro de Berlim e, por que
não dizer, a derrocada do Império do Mal. A título de curiosidade, a CIA passou
a ter uma vigilância eletrônica maior sobre o Vaticano quando detectou um
telefonema, em 5 de julho de 1979, de Walesa (líder sindical e futuro
presidente da Polônia) perguntando se João Paulo II aprovaria o nome
Solidariedade para o movimento político de união sindical que viria a ser
implantado. Walesa explicou que a palavra tinha sido tirada da encíclica
pontifícia Redemptor Homis – um documento devotado à redenção e à dignidade da
raça humana.
A
luta do Solidariedade contra o governo títere da Polônia serviu para dar uma
nova força ao trio Marcinkus-IOR, Calvi-Banco Ambrosiano e, obviamente,
Gelli-P2. A P2 providenciava os meios para reforçar as instituições
anticomunistas na Europa e na Ibero-América com fundos do IOR e da CIA. Calvi,
que foi encontrado enforcado – alegou-se suicídio – sobre a Ponte Blackfriars
(Frades Negros) em Londres em 17 de junho de 1982, gabava-se de ter-se
encarregado pessoalmente da transferência de 20 milhões de dólares do IOR para
o Solidariedade, embora a soma total
drenada
para a Polônia tenha sido de mais de 100 milhões de dólares. Durante a saga
lendária de Calvi, devem ser citados os seguintes acontecimentos: i) em 1992, o
desertor da máfia Francesco Mannino Mannoia disse que Calvi foi estrangulado
por Francesco di Carlo, o responsável pelo tráfico de heroína em Londres. A
ordem de morte teria partido de Pippo Calo, tesoureiro da máfia e embaixador em
Roma. Desesperado por tapar os rombos do seu banco, Calvi teria concordado em
lavar grande quantidade de dinheiro da máfia e que, com o passar do tempo, ele
teria desviado parte do dinheiro da máfia para manter o banco funcionando; ii)
preocupado com a descoberta pela máfia de seus desvios de dinheiro, Calvi teria
viajado para Londres para tentar um empréstimo com o tesoureiro da Opus Dei. Se
a operação fosse realizada, Calvi pagaria à máfia e salvaria o banco da
investigação do Banco Central italiano. Por alguma razão – maquiavelismo da
Opus Dei ou beijo mafioso – o empréstimo não se realizou e Calvi enforcou-se ou
foi forçado a isso. Após a morte de Calvi, o Vaticano nomeou uma comissão de
“Quatro Notáveis” sendo um deles, Herman Abs, ex-presidente do Deutsche Bank.
Com
a fuga de Gelli para o seu exílio na Suíça e a morte de Calvi, assistiu-se à
derrocada formal da P2. Apesar da dissolução da P2 em 1981 e da expulsão de
Gelli pelo Grande Oriente da Itália, o espírito da P2 não feneceu. A prisão, no
aeroporto de Fiumicino da Signora Maria Gelli, sua filha, com uma mala cheia de
documentos, bem diferentes dos de Villa Wanda, de pessoas envolvidas em
espionagem fosse na KGB, fosse no MI6 e outros quejandos podia ter sido uma
mensagem de Gelli para um bom entendedor. O saldo entre os principais atores e
algumas instituições apresenta-se o seguinte: o octagenário Gelli, depois de
fugas rocambolescas, pois esteve no Uruguai, Sérvia, Belgrado, Suíça, Marselha,
Aix-en-Provence, acabou, finalmente, preso e extraditado em Cannes em 1998, em
uma de suas mansões de alto luxo na Costa Azul da Riviera francesa, é condenado
a doze anos de prisão por estar envolvido na bancarrota do Ambrosiano; Calvi e
Sindona, mortos; Paul Marcinkus é exilado para uma paróquia perdida nos confins
dos Estados Unidos; o GOI não quer mais falar nesse assunto tabu; a maçonaria
anglo-saxônica desconhece solenemente a questão (não existe um único artigo
sobre o assunto no Ars Quatuor Coronatorum, somente referências esparsas); o
Vaticano, por ser um Estado soberano não permite nenhuma investigação dos
procuradores italianos sobre o assunto.
Os
recursos humanos estratégicos da P2, contudo, ainda atuam na política italiana,
pois em junho de 1994, o abastado homem de negócios do norte da Itália – Silvio
Berlusconi foi nomeado primeiro-ministro. O piduisti (pedoisista) Berlusconi
tentou passar um decreto-lei cujo texto rezava que os delitos de corrupção e de
concussão são considerados ‘menos graves’ e, em consequência, a detenção
preventiva é suprimida. Será que a lição da P2 foi aprendida?
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